Organizações apontam inconstitucionalidade da Resolução Conjunta da Sedese e Semad, do Governo de MG, e exigem revogação

Organizações apontam inconstitucionalidade da Resolução Conjunta da Sedese e Semad e exigem revogação

NOTA TÉCNICA SOBRE A RESOLUÇÃO CONJUNTA SEDESE/SEMAD Nº 01, DE 04 DE ABRIL DE 2022 QUE REGULAMENTAA CONSULTA PRÉVIA, LIVRE E INFORMADA

No dia 05 de abril de 2022, a Resolução Conjunta SEDESE/SEMAD nº 01, de 04 de abril de 2022, foi publicada no Diário Oficial de Minas Gerais, com o seguinte preâmbulo: Regulamenta a Consulta Livre, Prévia e Informada – CLPI, promovida pela Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social – SEDESE e pela Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável – SEMAD, para consultar os povos interessados, mediante procedimentos apropriados, cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente. Referida Resolução padece de ilegalidade por sua própria forma de construção e pelos dispositivos constantes ao longo de seu texto, que ferem direitos previstos não apenas na Constituição Federal, mas também em legislações infraconstitucionais e nas jurisprudências nacionais e internacionais, assim como consolidações em vasta doutrina sobre o tema. Vejamos abaixo.

1. PRELIMINARMENTE

1.1 DA INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL POR VÍCIO DE INICIATIVA

A Resolução Conjunta SEDESE/SEMAD nº 01, de 04 de abril de 2022, publicada no Diário Oficial de 05 de abril de 2022, dispõe sobre direitos coletivos indígenas, posto que esses são abarcados na categoria “povos e comunidades tradicionais”. Ocorre que nossa CF/88 é categórica ao dispor, em seu art. 22, inciso XIV, que compete privativamente à União legislar sobre populações indígenas. Ainda que estejamos diante de um ato administrativo e não uma medida legislativa, é uníssono o entendimento que a palavra “legislar” é admitida na Constituição em seu sentido amplo, podendo ser substituída por “estatuir, preceituar”, não se restringindo apenas a atos do Poder Legislativo, em respeito a uma leitura atualizada conforme a Constituição de 1988 da Lei 6.001/73 (Estatuto do Índio). De fato, a competência federal para atribuição de políticas indigenistas no Brasil está prevista na legislação brasileira desde os tempos do Império, mas mais recentemente é baseada na Lei 5371/1967, que funda a Fundação Nacional do Índio e determina que é esse o órgão capaz de “estabelecer as diretrizes e garantir o cumprimento da política indigenista” (artigo 1º, I), além do Estatuto do Índio e da própria Constituição Federal (artigos 22, XI, e 109, XI e 231). Em resumo, há, de pronto, um vício insanável na Resolução: a incompetência absoluta do Estado de Minas Gerais para tratar de questão indígena.

1.2 DOS VÍCIOS NA CONSTRUÇÃO DA RESOLUÇÃO

A Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) é um tratado de direitos humanos que foi ratificado pelo Estado brasileiro por meio do Decreto Legislativo nº 143, em vigor desde 2003, internalizado no ordenamento jurídico brasileiro por meio do Decreto 5.051, de 19 de Abril de 2004, revogado pelo Decreto 10.088 de 05 de novembro de 2019, que consolidou as Convenções da OIT ratificadas pelo Brasil (Anexo LXII), tendo por objetivo ser um instrumento de proteção e salvaguarda dos direitos de povos e comunidades tradicionais, garantindo-lhes, dentre outros, o direito à autoatribuição, o direito à consulta e à participação na tomada de decisões que possam trazer impactos ao seu modo de vida, às suas terras e territórios. O direito à consulta prévia, livre, informada, de boa fé e culturalmente apropriada, prevista no art. 6º da Convenção, estabelece que ela deve ser garantida “cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente” (Art. 6º, 1., a). A Resolução SEDESE/SEMAD nº 01, de 04 de abril de 2022, publicada no diário oficial em 05/04/2022, e objeto da presente nota técnica é indiscutivelmente uma medida administrativa que afeta os povos e comunidades tradicionais no estado de Minas Gerais, na medida em que se propõe a regulamentar o procedimento de consulta. Nenhum povo ou comunidade tradicional, por meio de suas entidades representativas, foi convidada a discutir e não participou efetivamente do processo de elaboração dessa resolução. Tentativas de regulamentação do direito de consulta já foram rechaçadas tanto em âmbito federal, quanto estadual, justamente porque consultar os povos interessados e garantir sua participação é medida primeira e anterior a qualquer medida que se proponha a “regulamentar” o direito de consulta. Nesse sentido, é importante destacar que, como tratado de direitos humanos, a Convenção 169 da OIT tem status normativo supralegal. Em julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 3239, o Ministro Celso de Mello manifestou inclusive entendimento da natureza constitucional da Convenção 169 da OIT: “(…) essa convenção, por versar a questão dos direitos humanos, de direitos fundamentais, desfruta, segundo entendo, na ordem jurídica nacional, uma clara posição hierárquica que lhe confere natureza constitucional, para além da própria noção de supralegalidade. Eu destaco, nesse ponto, que há expressivas lições doutrinárias, como aquelas ministradas pelo Professor Antônio Augusto Cançado Trindade, hoje juiz da Corte Internacional de Justiça, em Haia, Flávia Piovezan, o eminente professor Celso Lafer, e Valerio de Oliveira Mazzuoli, entre outros eminente autores, que sustentam, com sólida fundamentação teórica, que os tratados internacionais, as convenções internacionais de direitos humanos, e a Convenção OIT 169 assume essa qualificação jurídica, se revestem na ordem positiva interna brasileira, de qualificação constitucional. Acentuando-se, ainda, que essas convenções internacionais, como a convenção OIT 169, em matéria de direitos humanos, celebradas pelo Brasil, assumem caráter materialmente constitucional, compondo, sob tal perspectiva, a própria noção de bloco de constitucionalidade(grifo nosso)

1. Em 2018, por meio da Recomendação Conjunta nº 007/2018, a Defensoria Pública do Estado do Pará, Defensoria Pública da União, os Ministério Público do Estado do Pará e Ministério Público Federal, rechaçaram a previsão de constituição de um GT para regulamentação do direito à consulta no estado do Pará, via de Decreto Estadual, justamente pela ilegalidade do instrumento. As razões apresentadas pelos órgãos na referida recomendação destacam a ilegalidade de um decreto para a regulamentação da consulta justamente pela não consulta dos povos interessados, o que fere de forma direta toda normativa e jurisprudência sobre o tema. Veja-se:

CONSIDERANDO que o Brasil reconhece o caráter obrigatório da jurisdição contenciosa da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) desde 10 de dezembro de 1998, quando fora depositado documento junto ao Secretário-Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), no qual o estado brasileiro se compromete a implementar as decisões do órgão decorrentes da responsabilidade internacional por violação de direitos humanos; (…) CONSIDERANDO que a Corte IDH e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos fixaram diversos parâmetros mínimos para a aplicação do direito à consulta prévia, livre e informada (…);

CONSIDERANDO que estes padrões internacionais devem ser necessariamente observados na aplicação do direito à consulta prévia, livre e informada; (…) CONSIDERANDO que o §1º do artigo 5º da Constituição Federal dispõe que as normas definidoras de direitos fundamentais possuem força normativa e aplicabilidade imediata, o que se estende às normas estabelecidas em tratados internacionais de direitos humanos ratificados no país, implicando dizer que a plena efetividade e aplicação do direito à consulta prévia, livre e informada previsto na Convenção nº. 169 prescinde de qualquer regulamentação, como o próprio Supremo Tribunal Federal atestou no julgamento da Pet. 3388 (Caso da Terra Indígena Raposa Serra do Sol) e da ADIn 3.239;[1]

CONSIDERANDO que o Tribunal Regional Federal da 1ª Região – cuja jurisdição abrange o Estado do Pará – tem reconhecido, de maneira uníssona, a aplicabilidade imediata do direito à consulta prévia, independentemente de qualquer regulamentação (…) CONSIDERANDO que o Relator Especial das Nações Unidas sobre Direitos dos Povos Indígenas afirmou, em Relatório aprovado pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU, que “Os Estados também tem a obrigação geral de consultar os povos indígenas sobre as medidas legislativas que possam afetá-los, particularmente com relação à regulamentação legal dos procedimentos de consulta. O cumprimento do dever de consultar os povos indígenas e tribais sobre a definição do marco legislativo e institucional da consulta prévia é uma das medidas especiais requeridas para promover sua participação na adoção de decisões que os afetem diretamente” (ONU – Consejo de Derechos Humanos – Informe del  Relator Especial sobre la situación de los derechos y las liberdades fundamentales de los indígena, James Anaya. Doc ONU A/HRC/12/34, de 15 de julho de 2009, parágrafo 67); CONSIDERANDO a edição, pelo Governo do Estado do Pará, do Decreto nº. 1.969 de 24 de janeiro de 2018, publicado no Diário Oficial do Estado do Pará em 25 de janeiro de 2018, D.O.E. nº. 33545, que instituiu o Grupo de Estudos das Consultas Prévias, Livres e Informadas pelo Governo do Estado do Pará, cujo principal escopo é “Propor ao Governador do Estado o Plano Estadual de Consultas Prévias, Livres e Informadas, que será aprovado por meio de Decreto” (Artigo 1º, III); CONSIDERANDO que o referido Plano Estadual de Consultas Prévias, Livres e Informadas – a ser proposto pelo Grupo e aprovado pelo Governo do Estado – possui natureza de medida legislativa e que visa alterar o status jurídicos de direitos coletivos dos povos indígenas, comunidades quilombolas e povos e comunidades tradicionais, sua edição deveria ser precedida de consulta prévia, livre e informada a todos os grupos afetados; (…)

CONSIDERANDO que os Protocolos de Consulta Prévia, associados à observância dos padrões internacionais fixados pela Convenção nº. 169 e jurisprudência da Corte IDH, oferecem parâmetros suficientes para aplicação concreta do direito à consulta prévia, livre e informada;

RESOLVEM, nos termos das disposições do artigo 6º, inciso XX, da Lei Complementar nº 75/93, bem assim do artigo 27, parágrafo único, e inciso IV, da Lei nº 8.625/93: RECOMENDAR a imediata revogação do Decreto n° 1969, de 24 de janeiro de 2018, em razão de violar a Convenção nº. 169 da Organização Internacional do Trabalho, no que tange ao direito à consulta prévia, livre e informada dos povos indígenas, comunidades quilombolas e povos e comunidades tradicionais (grifos nossos)[2];

Assim sendo, tanto no caso do Pará via Decreto como no caso de Minas Gerais, via Resolução, observamos que a tentativa de regulamentar o direito de consulta é equivocada, haja vista que os próprios instrumentos em si devem ser objeto de consulta por serem medidas que afetam diretamente aos povos e comunidades tradicionais. É nesse sentido que aponta o documento de Normas e Jurisprudências da CIDH. Vejamos: 300.

Os Estados também têm a obrigação geral de consultar os povos indígenas sobre medidas legislativas que possam afetá-los diretamente, particularmente em relação à regulamentação legal dos procedimentos de consulta. O cumprimento do dever de consultar os povos indígenas e tradicionais sobre a definição da estrutura legislativa e institucional para consulta prévia é uma das medidas especiais necessárias para promover a participação dos povos indígenas na adoção de decisões que os afetam diretamente.

(COMISIÓN INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Derechos de los pueblos indígenas y tribales sobre sus tierras ancestrales y recursos naturales. Normas y jurisprudencia del Sistema Interamericano de Derechos Humanos, 2009.)[3]

 Trechos da recomendação conjunta nº 007/2018, elaborada pela Defensoria Pública do Estado do Pará, Defensoria Pública da União, Ministério Público do Estado do Pará e Ministério Público Federal. Anexo 1 da presente nota técnica. Ressaltamos que a ausência de regulamentação não impede a aplicação da Convenção 169 da OIT por ela ser norma de direitos humanos que têm aplicabilidade imediata. Os próprios Protocolos de Consulta, instrumentos autônomos elaborados pelos povos e comunidades, têm sido capazes de garantir a efetividade do procedimento, e devem ser respeitados enquanto norteadores ao procedimento de consulta a ser aplicado pelo Estado. Diante disso, conclui-se que a Resolução ora questionada desrespeita o próprio procedimento legal que ela pretende regulamentar, trazendo um vício insanável para a mesma, e impondo a necessidade da sua imediata revogação.

2. DOS INÚMEROS VÍCIOS AO LONGO DE TODA A RESOLUÇÃO QUE REFORÇAM SUA ILEGALIDADE

A despeito da ilegalidade do procedimento que culminou nesta resolução, não por acaso, a Resolução em si é dotada de vícios que ferem não só a Convenção 169 da OIT, como também legislação constitucional, infraconstitucional, e até mesmo estadual, como será melhor explorado abaixo.

2.1. DO IMPERATIVO LEGAL DO CRITÉRIO DA AUTOATRIBUIÇÃO

A Convenção 169 da OIT é expressa ao determinar quem são seus sujeitos de direitos, “povos indígenas e tribais”, e qual o critério para se identificar esses sujeitos, segundo o que dispõe o art. 2 da Convenção 169, OIT “2. A consciência de sua identidade indígena ou tribal deverá ser considerada como critério fundamental para determinar os grupos aos que se aplicam as disposições da presente Convenção”.[4]

Ou seja, a autoatribuição é o critério fundamental. Não cabe aos Estados e governos delimitar quem são os povos e comunidades tradicionais (PCTs) destinatários da consulta como o fez a presente Resolução no Art. 1o, § 2º:

Art, 1o (…)

§ 2º – Consideram-se, para fins de aplicação da CLPI, as comunidades quilombolas certificadas pela Fundação Cultural Palmares – FCP, os povos indígenas reconhecidos pela Fundação Nacional do Índio – FUNAI e os povos e comunidades tradicionais certificados pela Comissão Estadual para o Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais em Minas Gerais – CEPCT/MG. 4 Disponível em: D10088. para promover la participación de los pueblos indígenas en la adopción de las decisiones que les afectan directamente.”

Ao estabelecer como destinatários da consulta apenas os PCTs que possuem certificação/reconhecimento do Estado, a Resolução fere de morte o próprio princípio da autodeterminação dos povos, previsto na Convenção 169 da OIT. Reafirmamos que, sobre esse aspecto, de acordo com a Convenção 169, a identificação enquanto povo tradicional é auto-atributiva e independe do reconhecimento do Estado. Caso os responsáveis operem a consulta conforme prevê a resolução, uma quantidade expressiva de comunidades deixarão de ter seus direitos garantidos.

Importante relembrar que o processo de autodeterminação enquanto povo e comunidade tradicional é um processo político marcado por muitos elementos dificultadores, sejam eles o desconhecimento da legislação de seus direitos e o próprio racismo. Sabemos, ainda, que dentre os PCTs existem inúmeros que ainda estão em processo de auto identificação e outros já com procedimentos em aberto para a certificação. Esses povos não podem ficar à margem do direito à consulta, pelo contrário, devem ter esse direito resguardado.

Ademais, a vasta literatura e jurisprudência sobre o tema é consensual ao estabelecer que os povos e comunidades tradicionais são aqueles que assim se autodenominem, de forma coletiva e com apoio de seus pares, sendo o ato de certificação do Estado um ato formal, declaratório, mas não constitutivo da condição de ser PCTs. Foi assim no julgamento da ADI 3239, que discutia a constitucionalidade do decreto 4887/2003 no Supremo Tribunal Federal. Vejamos: EMENTA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. DECRETO nº 4.887/2003. PROCEDIMENTO PARA IDENTIFICAÇÃO, RECONHECIMENTO, DELIMITAÇÃO, DEMARCAÇÃO E TITULAÇÃO DAS TERRAS OCUPADAS POR REMANESCENTES DAS COMUNIDADES DOS QUILOMBOS. ATO NORMATIVO AUTÔNOMO. ART. 68 DO ADCT. DIREITO FUNDAMENTAL. EFICÁCIA PLENA E IMEDIATA. INVASÃO DA ESFERA RESERVADA A LEI. ART. 84, IV E VI, “A”, DA CF. INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL. INOCORRÊNCIA. CRITÉRIO DE IDENTIFICAÇÃO. AUTOATRIBUIÇÃO. TERRAS OCUPADAS. DESAPROPRIAÇÃO. ART. 2º, CAPUT E §§ 1º, 2º E 3º, E ART. 13, CAPUT E § 2º, DO DECRETO nº 4.887/2003. INCONSTITUCIONALIDADE MATERIAL. INOCORRÊNCIA. IMPROCEDÊNCIA DA AÇÃO. (…) 7. Incorporada ao direito interno brasileiro, a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho – OIT sobre Povos Indígenas e Tribais, consagra a “consciência da própria identidade” como critério para determinar os grupos tradicionais aos quais aplicável, enunciando que Estado algum tem o direito de negar a identidade de um povo que se reconheça como tal. 8. Constitucionalmente legítima, a adoção da autoatribuição como critério de determinação da identidade quilombola, além de consistir em método autorizado pela antropologia contemporânea, cumpre adequadamente a tarefa de trazer à luz os destinatários do art. 68 do ADCT, em absoluto se prestando a inventar novos destinatários ou ampliar indevidamente o universo daqueles a quem a norma é dirigida. O conceito vertido no art. 68 do ADCT não se aparta do fenômeno objetivo nele referido, a alcançar todas as comunidades historicamente vinculadas ao uso linguístico do vocábulo quilombo. Adequação do emprego do termo “quilombo” realizado pela Administração Pública às balizas linguísticas e hermenêuticas impostas pelo texto-norma do art. 68 do ADCT. Improcedência do pedido de declaração de inconstitucionalidade do art. 2°, § 1°, do Decreto 4.887/2003. 9. Nos casos Moiwana v. Suriname (2005) e Saramaka v. Suriname (2007), a Corte Interamericana de Direitos Humanos reconheceu o direito de propriedade de comunidades formadas por descendentes de escravos fugitivos sobre as terras tradicionais com as quais mantêm relações territoriais, ressaltando o compromisso dos Estados partes (Pacto de San José da Costa Rica, art. 21) de adotar medidas para garantir o seu pleno exercício. 10. O comando para que sejam levados em consideração, na medição e demarcação das terras, os critérios de territorialidade indicados pelos remanescentes das comunidades quilombolas, longe de submeter o procedimento demarcatório ao arbítrio dos próprios interessados, positiva o devido processo legal na garantia de que as comunidades tenham voz e sejam ouvidas. (…) grifo nosso

Além disso, a Resolução também fere o próprio Decreto 6.040/2007, que define, no inciso I, Art. 3o os povos e comunidades tradicionais[5]:

Art. 3o (…)

I – Povos e Comunidades Tradicionais: grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição.

 Ao definir o conceito de PCTs, o Decreto 6.040/2007 jamais estabeleceu que os PCTs são somente aqueles povos com certificação ou reconhecimento formal do Estado. Mais uma vez, o único critério estabelecido é a autodefinição.

A resolução também fere diretamente a própria Lei 21.147/2014 do Estado de Minas Gerais que estabelece, em consonância com toda a normativa, nacional e internacional, jurisprudência, doutrina e literatura, como se definem os povos e comunidades tradicionais. Veja-se:

Art. 2º Para os fins desta Lei, consideram-se: I – povos e comunidades tradicionais os grupos culturalmente diferenciados que se reconhecem como tais e possuem formas próprias de organização social, ocupando territórios e utilizando recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica e aplicando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição;

Corroborando a esta argumentação, destacamos o entendimento do Superior Tribunal Federal (STF) quando afastou expressamente a heteroidentificação de povos indígenas na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 709, em março de 2021, anulando a Portaria nº 04/2021 da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) que estabelecia critérios conceituais e mudanças em relação a identidade da população, considerando sua inconstitucionalidade, sua inconvencionalidade e o desrespeito à jurisprudência consolidada. Isso porque, além das normativas internas e internacionais, o artigo 231 da Constituição Federal de 1988 é expresso em relação ao reconhecimento da organização social, dos usos, dos costumes e das tradições dos povos que se entendem como indígenas no território nacional. 5 Tal definição é reproduzida na Lei 21.147/2004, no seu art. Art. 2º, I. Disponível em: Lei nº 21.147, de 2014.

 Em outras palavras, a Resolução da SEDESE imputa à FUNAI obrigação de determinar quais são as comunidades indígenas em Minas Gerais, ainda que exista decisão judicial expressa que impede o órgão indigenista de fazê-lo. É, também, nesse sentido que prevê a Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas, da Organização dos Estados da América (OEA):

Artigo 1:

  1. A Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas aplica-se aos povos indígenas das Américas. 2. A autoidentificação como povo indígena será um critério fundamental para determinar a quem se aplica a presente Declaração. Os Estados respeitarão o direito a essa autoidentificação como indígena, de forma individual ou coletiva, conforme as práticas e instituições próprias de cada povo indígena. (grifo nosso)

Assim sendo, estabelecer que seriam destinatários da consulta apenas aqueles que são reconhecidos ou certificados pelo estado para fins de garantia do direito de consulta é absolutamente inconstitucional, uma vez que desrespeita a autoidentificação dos povos indígenas, dos quilombolas e das demais comunidades tradicionais, bem como demonstra uma tentativa de restringir o direito dos povos e comunidades tradicionais à consulta prévia, livre e informada, deixando à margem e excluindo uma série de comunidades que ainda estão na invisibilidade e com seus processos de autoidentificação em curso.

Nessa perspectiva, a Resolução é uma tentativa do Estado de Minas Gerais de restringir os sujeitos de direitos enquanto comunidades tradicionais, em prejuízo daquelas que existem tradicionalmente no estado mas ainda não foram formalmente reconhecidas e das que estão em processo de etnogênese.

Também por tal fundamentação a Resolução merece ser imediatamente revogada.

2.2. DOS RESPONSÁVEIS POR REALIZAR A CONSULTA LIVRE, PRÉVIA E INFORMADA

De acordo com o artigo 3º da resolução objeto desta nota, são responsáveis por realizar a CLPI:

I – a Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social – Sedese e a Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável – Semad, nos limites de suas competências, quando os possíveis impactos resultarem de medidas legislativas ou administrativas de competência do Poder Público Estadual.

II – o empreendedor privado, no caso de possíveis impactos provenientes de projetos desenvolvidos pela iniciativa privada.

III – o Poder Público Municipal ou Federal, no caso de possíveis impactos provenientes de projetos desenvolvidos em suas alçadas.

§ 1º – A CLPI, quando realizada pelo empreendedor privado, será supervisionada pela Sedese, que definirá as diretrizes metodológicas e as orientações sobre o processo.

§ 2º – O empreendedor privado deverá contratar, com recursos próprios, assessoria técnica especializada para a realização da CLPI e o cumprimento das ações previstas no art. 5º desta resolução.

§ 3º – A execução da consulta a que se refere o § 2º deverá guiar-se por documentos orientadores elaborados pela Sedese e pela Sedese (sic) (grifos nossos)

Essa previsão é ilegal posto que a consulta é de responsabilidade dos Governos e Estados e deve ser feita mediante procedimentos apropriados e através de instituições representativas dos povos interessados, respeitando a autonomia e as culturas dos povos. É o que prevê o art. 6o, inciso 1, alínea a, da Convenção 169 da OIT:

Art. 6

1-. Ao aplicar as disposições da presente Convenção, os governos deverão: a) consultar os povos interessados, mediante procedimentos apropriados e, particularmente, através de suas instituições representativas, cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente (grifos nossos)

Há, portanto, dois aspectos principais previstos neste único art. 6 o. da Convenção 169 da OIT que o artigo 3º elencado acima fere a uma só vez. São eles: o dever do governo de consultar os povos e a necessidade de fazer uso de procedimentos apropriados.

No que diz respeito ao dever do governo de consultar os povos, a letra da lei é nítida em endereçar ao poder público essa responsabilidade. Também o é o entendimento da Corte IDH, explicitado no caso Kichwa de Sarayaku vs. Equador:

187. Cumpre salientar que a obrigação de consultar é responsabilidade do Estado, razão pela qual o planejamento e realização do processo de consulta não é um dever que se possa evitar, delegando-o a uma empresa privada ou a terceiros, muito menos à mesma empresa interessada na extração dos recursos no território da comunidade objeto da consulta. (Kichwa de Sarayaku vs. Equador, 2012.)

Nesse sentido, a doutrina especializada nos ensina que é “descabida (…) a iniciativa de alguns órgãos e entes governamentais de delegar ou terceirizar a empresas privadas o diálogo com as comunidades.[6]” Em que pese o fato de que as empresas tenham que se implicar na consulta e se atentar ao estrito respeito dos Protocolos de Consulta das comunidades, não pode ser ela a realizar a consulta. Não há amparo legal, portanto, para a disposição do inciso II do artigo 3o da Resolução, que convoca o empreendedor privado à responsabilidade por realizar a CLPI.

Mais do que isso, o princípio da vedação do retrocesso em direitos humanos, assim como o status supralegal da Convenção 169, impossibilita que o Estado se omita de resguardar os direitos dos povos indígenas, quilombolas e das comunidades tradicionais e de participar do processo de consulta.

Em relação ao uso de procedimentos de consulta apropriados, a qualificação da consulta como apropriada abarca necessariamente o respeito ao princípio da autonomia das comunidades, sua forma de se organizar internamente e de tomar decisões. É nesse sentido que os protocolos indicam, cada um à sua própria maneira:

“1) quem participa do processo; 2) como é construído o consentimento; 3) qual é a língua em que a consulta deve se passar; 4) quais são os prazos envolvidos; 5) quais são os locais onde deverão ser realizadas as reuniões; 6) quem financia o processo; 7) distinções entre fases internas e externas; 8) considerações sobre a qualidade da informação, estudos necessários e respeito aos conhecimentos tradicionais.” 7 (grifos nossos).

Sendo assim, não pode a resolução pretender se sobrepor a essas indicações e propor parâmetros para a realização da consulta que ferem as previsões dos protocolos e os direitos a eles associados, sob pena de ferir o princípio jurídico que garante autonomia aos povos. É por isso que a doutrina nos ensina que os Protocolos Autônomos de Consulta e Consentimento não podem, em qualquer hipótese e sob pena de serem considerados inválidos e nulos, ser elaborados por qualquer terceiro estrangeiro ao próprio povo envolvido, nem mesmo empresas ou órgãos governamentais “e, muito menos, pode ser elaborado por atores interessados em realizar processos de consulta e obter o consentimento livre, prévio e informado junto a esses povos.”[7]

Sobre a tentativa de uniformização do processo de consulta, Carlos Marés entende que essa é, per se, uma violação à Convenção 169:

Foi assim que a primeira relação dos Estados nacionais para estabelecer a consulta e seu procedimento foi criar leis gerais, muito de acordo com a representatividade moderna. Era de se esperar esta atitude; a lógica dos Estados nacionais, quando querem garantir algum direito ou estabelecer um procedimento, indica a redação de legislação específica. Entretanto, essa iniciativa poderia resolver a obrigação do Estado porque os funcionários teriam um guia, um modelo para aplicar, mas certamente não resolveria a incolumidade do direito dos povos, inepta frente à profunda, densa e multiforme diversidade organizacional dos povos. Seria o Tatarrey sem Thakhi e sem livros de atas, um simulacro, uma reprodução grotesca, não passaria pelas instituições representativas nem seria o acordo e o consentimento – em resumo, não seria uma consulta formal, não haveria boa-fé, os direitos tradicionais seriam violados. Está claro que não pode ser realizada esta consulta com um roteiro geral que sirva para todos os atos causadores de potencial dano a direitos e pertinente a todos os povos. É comum os órgãos ambientais estabelecerem Roteiros Metodológicos para formular Planos de Manejo de Unidades de Conservação nos quais consta a forma de relacionamento com os moradores da Unidade ou de sua vizinhança. Esses Roteiros podem servir para quem tem direitos de propriedade sobre a terra, e não para quem a usa como extensão de seu direito à existência como grupo humano, como coletividade. Os roteiros metodológicos gerais, firmados ou não em lei, não servem para promover a 8 Idem, p. 61. 7 Idem, p. 101. consulta conforme as determinações da Convenção n. 169 da OIT. Algo novo teria que ser pensado.9

É eivada de vícios, portanto, a definição promovida pela resolução de responsáveis por realizar a CLPI.

2.3. DOS PRAZOS ESTABELECIDOS NA RESOLUÇÃO

Outra ilegalidade que fere a Convenção 169 da OIT é o estabelecimento de prazos, tanto para a construção de protocolos de consulta, quanto para o procedimento de consulta propriamente dito:

Art. 13: (…)

§ 8º – O responsável pela CLPI, após notificação prevista no § 6º, deverá garantir o prazo de 45 (quarenta e cinco) dias corridos para que os povos e comunidades tradicionais possivelmente afetados possam elaborar o seu Protocolo de Consulta, se assim desejarem.

§ 9º – Nos casos de licenciamento ambiental, a realização da CLPI deve ser fundada em até 120 (cento e vinte) dias corridos após notificação sobre a necessidade de promoção da consulta, que trata o § 3º, sendo imperativa, dentro desse lapso temporal, a comunicação ao órgão ambiental licenciador nos termos do art. 26 do Decreto nº 47.383, de 2018.

A criação e determinação de prazos demonstra uma tentativa de uniformização do procedimento de consulta, desrespeitando a autonomia dos povos, sua diversidade, e seus direitos de definirem suas formas de organização social e política.

A Convenção 169 da OIT é expressa ao determinar os princípios norteadores da consulta, que deve ser feita “mediante procedimentos apropriados e, particularmente, através de suas instituições representativas” garantindo que os povos “possam participar livremente, pelo menos na mesma medida que outros setores da população e em todos os níveis” (Art. 6º).

A jurisprudência da Corte IDH sublinha a necessidade de adequação cultural de cada procedimento de consulta:

201. Este Tribunal estabeleceu, em outros casos, que as consultas a povos indígenas devem-se realizar mediante procedimentos culturalmente adequados, isto é, em conformidade com suas próprias tradições. Por sua vez, a Convenção no 169 da OIT dispõe que “os governos deverão […] consultar os povos interessados, mediante procedimentos apropriados e, particularmente, através de suas instituições representativas”, bem como 9 SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. Primeira parte: A força vinculante do protocolo de consulta. In: SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés; SILVA, Liana Amin Lima da; OLIVEIRA, Rodrigo; MOTOKI, Carolina; GLASS, Verena (org.). Protocolos de consulta prévia e o direito à livre determinação. São Paulo: Fundação Rosa Luxemburgo; CEPEDIS, 2019. pp. 32-33. adotar “medidas para garantir que os membros desses povos possam compreender e se fazer compreender em procedimentos legais, facilitando para eles, se for necessário, intérpretes, ou outros meios eficazes”, levando em conta sua diversidade linguística, particularmente nas áreas onde o idioma oficial não seja falado majoritariamente pela população indígena. (Kichwa de Sarayaku vs. Equador, 2012.)

A imposição de prazo não encontra amparo na legislação atinente ao tema, além de ferir a autonomia dos povos que possuem formas próprias de organização e decisão.

Existem diversos fatores sociais, culturais, tradicionais e religiosos que demonstram que cada comunidade tradicional de Minas Gerais têm suas especificidades. Apenas entre os mais de vinte povos indígenas que estão no estado, por exemplo, há povos que não são falantes da língua portuguesa e outros que passam parte do ano em reclusão por motivos religiosos. Assim, a imposição de que todos eles tenham o mesmo prazo para serem consultados, em linguajar e costumes que não são os seus, é expressamente inconstitucional, além de violar a Convenção 169, OIT.

Há que se considerar ainda que a Resolução trata em dias corridos. Sabemos que nas comunidades tradicionais existem pessoas que trabalham no campo, mas também na cidade, algumas inclusive aos finais de semana, sobrando apenas o domingo para o descanso. Ao considerar dias corridos, a resolução ignora a existência de finais de semana, destinados ao descanso, assim como ignora a existência de feriados destinados a passeios e até mesmo eventos festivos, religiosos etc, em que as comunidades estão totalmente envolvidas, conforme seus costumes e suas tradições.

Afinal, a organização temporal de povos e comunidades tradicionais não necessariamente se dá nos mesmos moldes que na sociedade ocidentalizada. É nesse sentido que ao reconhecer essas comunidades como possuidoras de identidades específicas, tais especificidades também reverberam na própria forma de se relacionarem com o tempo, visto que seu calendário produtivo e religioso estão intimamente interconectados com as variações das estações de chuva e seca.

Dessa forma a disponibilidade em se dedicarem aos assuntos extracomunitários deve respeitar seus modos próprios de organização temporal. Assim sendo, os prazos estabelecidos na Resolução não só ferem o aspecto “LIVRE” da consulta, por estabelecer um lapso temporal não condizente com a realidade das populações, como também fere o aspecto “INFORMADO” da consulta, uma vez que, ao estabelecer um prazo uniformizado para todo e qualquer povo e comunidade, inviabiliza que cada povo e comunidade tome o tempo que lhe é condizente para que se alcance informações satisfatórias em adequação à sua especificidade cultural. Assim, a resolução fere a própria dinâmica da existência dos povos e comunidades tradicionais e as normativas a ela correlatas, ao desconsiderar suas formas próprias de organização social.

2.4. DA APLICAÇÃO DA CONSULTA EM CASO DE LICENCIAMENTO AMBIENTAL

Vejamos que no § 3º, Art. 1o da referida Resolução, considera-se que a aplicação da CLPI abrange tão somente os PCTS da área diretamente afetada pelo projeto ou à área de influência do projeto:

Art.1o (…)

§ 3º – Consideram-se, para fins de aplicação da CLPI, como povos e comunidades tradicionais possivelmente afetados, aqueles cujo território esteja sobreposto à área diretamente afetada pelo projeto ou medida legislativa ou administrativa ou à área de influência do projeto ou medida quando essa abranger impactos nesses grupos, conforme informações provenientes de estudos.

Ocorre que a Convenção 169, em seu art. 6º, estabelece como titular do Direito à Consulta toda e qualquer comunidade e povos que seja afetado por determinada medida legislativa ou administrativa. Dessa maneira, qualquer critério que vise restringir a titularidade desse direito, tal qual a localização do empreendimento em relação aos territórios, violam a Convenção 169 ao restringir o Direito à Consulta Prévia.

Ademais, sabe-se que os Estudos de Impacto Ambiental correm às custas do empreendedor que, por sua vez, visa o lucro. Não são novos os casos de estudos que subestimam os impactos dos projetos reduzindo inclusive as áreas diretamente afetadas, bem como suas respectivas áreas de influência. Por isso, tomar como base somente as comunidades localizadas na Área Diretamente Afetada (ADA) e, em alguns casos, aquelas em áreas de influência do empreendimento, como indicado no art. 12, não se traduz como mecanismo razoável, pois os impactos ambientais, com base em experiências acumuladas pelas mesmas comunidades nas últimas décadas, ocorrem de forma sistêmica e não só localmente.

Os desastres-crimes ocorridos em 2015, com o rompimento da barragem de Fundão da mineradora Samarco/Vale/BHP Biliton, no município de Mariana, afetaram toda a Bacia do Rio Doce e, em 2019, com o rompimento da barragem Córrego do Feijão da Vale S.A, em Brumadinho, afetou toda a Bacia do Rio Paraopeba e Represa de Três Marias. Esses desastres-crimes mostraram que a área de abrangência dos projetos, seja ela ambiental ou sócio econômica, pode ser muito maior do que se possa imaginar em uma mirada pouco atenta.

É preciso, ainda, considerar que, nos casos mais complexos, como aqueles que envolvem a construção de barragens, há que se considerar, conforme determinação do § 2º, Art. 6o, Lei 23.291/2019 (Institui a Política Estadual de Segurança de Barragens – Lei Mar de Lama Nunca Mais)10 , uma discussão a nível de bacia hidrográfica, onde, certamente, estarão povos e comunidades tradicionais. 10 Lei 23.291

Soma-se a isto, a Política Estadual de Atingidos por Barragens (Lei 23.795/2021)11 estabelece no art. 2o: (…)

V – atingidos por barragens as pessoas que sejam prejudicadas, ainda que potencialmente, pelos seguintes impactos socioeconômicos, decorrentes da construção, instalação, operação, ampliação, manutenção ou desativação de barragens na região afetada (…).

A Resolução, além de prever que o empreendedor diretamente interessado poderá realizar a consulta, chega a prever, no art. 14, que, nos casos em que se dispensa a apresentação do EIA/RIMA, haverá presunção do empreendedor sobre a existência ou não de PCTs na área prevista para o empreendimento. Nesse item em específico, torna-se necessário apontar que um número expressivo de comunidades tradicionais tem como principal ponto de pauta a garantia de seus territórios e que, por esse motivo, estão inseridas em contextos de conflitos fundiários e violências socioambientais perpetradas pelos próprios empreendedores. Tomar como base a “boa fé” da parte interessada é abrir toda possibilidade para intensificação de conflitos e violação de direitos.

Ou seja, a discussão não tem que se dar a nível de área diretamente afetada ou área de influência ambiental, tão somente, mas, também, economicamente. Ou seja, é preciso que a resolução considere todo um acúmulo de legislações, inclusive estaduais, que consideram a bacia hidrográfica e tomam como âmbito de abrangência afetados física, economicamente, culturalmente e de outras formas. Ainda, é consolidada a jurisprudência no sentido de que não existe dispensa de EIA/RIMA quando o empreendimento atingir Terra Indígena, e que a competência do licenciamento, nesse caso, é necessariamente do IBAMA. Ou seja, também nisso a Resolução contraria o ordenamento jurídico:

CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. DECISÃO CONCESSIVA DE PROVIMENTO LIMINAR. AGRAVO DE INSTRUMENTO: REEXAME DOS PRESSUPOSTOS DA LIMINAR. AGRAVO REGIMENTAL: NÃO-CABIMENTO. CONSTRUÇÃO DE USINA HIDRELÉTRICA EM RIO DE DOMÍNIO DA UNIÃO E QUE ATRAVESSA ÁREAS DE TERRAS INDÍGENAS. ESTUDO DE IMPACTO AMBIENTAL E RELATÓRIO DE IMPACTO AMBIENTAL. LICENCIAMENTO AMBIENTAL: COMPETÊNCIA DO IBAMA. DISPENSA DE LICITAÇÃO: REQUISITOS (ART. 24 DA LEI Nº 8.666/93). APROVEITAMENTO DE RECURSOS HÍDRICOS EM TERRAS INDÍGENAS: NECESSIDADE DE PRÉVIA AUTORIZAÇÃO DO CONGRESSO NACIONAL. (…) 3. É imprescindível a intervenção do IBAMA nos licenciamentos e estudos prévios 11 Lei 23.795 relativos a empreendimentos e atividades com significativo impacto ambiental, de âmbito nacional ou regional, que afetarem terras indígenas ou bem de domínio da União (artigo 10, caput e § 4º, da Lei nº 6.938/81 c/c artigo 4º, I, da Resolução nº 237/97 do CONAMA). 4. A dispensa de licitação prevista no artigo 24, XIII, da Lei nº 8.666/93 requer que a contratada detenha inquestionável reputação ético-profissional. 5. O aproveitamento de recursos hídricos em terras indígenas somente pode ser efetivado por meio de prévia autorização do Congresso Nacional, na forma prevista no artigo 231, § 3º, da Constituição Federal. Essa autorização deve anteceder, inclusive, aos estudos de impacto ambiental, sob pena de dispêndios indevidos de recursos públicos. 6. Agravo regimental não-conhecido. 7. Agravo de instrumento a que se nega provimento. (AG 2001.01.00.030607-5/PA; Sexta Turma, Relator Juiz ALEXANDRE MACHADO VASCONCELOS, convocado, DJ de 25/10/2001, pg. 424) 3.

CONCLUSÃO

Frente a todo o exposto, conclui-se que a Resolução Conjunta SEDESE/SEMAD nº 01, de 04 de abril de 2022 publicada no Diário Oficial de 05 de abril de 2022, é ilegal, inconstitucional e inconvencional, por violar frontalmente normativas nacionais e internacionais, devendo ser revogada pelo Estado de Minas Gerais, ou, caso não o seja, deve ser alvo de ações dos Poderes Legislativo e Judiciário a fim de restabelecer os direitos fundamentais dos povos indígenas, quilombolas e das demais comunidades tradicionais mineiras.

Isso porque tal Resolução fere, resumidamente:

1. A autoatribuição e a autodeterminação dos povos, prevista no Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da Organização das Nações Unidas (ONU), na Convenção 169 da OIT, na Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, da ONU e na Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas, da OEA;

2. O direito à consulta e ao consentimento prévio, livre e informado, de acordo com a Convenção 169, as Declarações sobre os Direitos dos Povos Indígenas, da ONU e OEA e a jurisprudência da Corte IDH, sobretudo ao dispor sobre a transferência da obrigação e competência exclusiva do Estado para o empreendedor privado;

3. A garantia da liberdade religiosa, por ignorar o calendário religioso específico de cada povo e comunidade tradicional, conforme o artigo 5º, VI e VIII da Constituição Federal;

4. Os direitos dos povos indígenas à organização social própria, usos, costumes, crenças e tradições, previstos no artigo 231 da Constituição Federal;

5. Os direitos culturais dos povos indígenas, comunidades afrobrasileiras, quilombolas e demais povos e comunidades tradicionais previstos nos artigos 215 e 216 da Constituição Federal e no Decreto 6.040 de 2007 que dispõe sobre a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais.

Assinam esta Nota Técnica:

 Coletivo Margarida Alves de Assessoria Popular

Conselho Indigenista Missionário

Terra de Direitos

Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares

Rede Nacional de Advogadas e Advogados Quilombolas – RENAAQ

Observatório de Protocolos Comunitários de Consulta e Consentimento Livre, Prévio e Informado


[1] 1ADI 3239, Supremo Tribunal Federal. Trecho destacado na nota técnica referente ao Projeto de Decreto Legislativo nº. 177/2021, assinada por diversos juristas brasileiros vinculados ao Centro de Pesquisa e Extensão em Direito Socioambiental (CEPEDIS) e Observatório de Protocolos Comunitários de Consulta e Consentimento Livre Prévio e Informado. Disponível em: http://observatorio.direitosocioambiental.org/wp-content/uploads/2021/08/Nota-Tecnica_PDL177_C169_CEPE DIS_12.05.21.pdf

[2] Trechos da recomendação conjunta nº 007/2018, elaborada pela Defensoria Pública do Estado do Pará, Defensoria Pública da União, Ministério Público do Estado do Pará e Ministério Público Federal. Anexo 1 da presente nota técnica

[3] Tradução livre do espanhol para o português. Veja o original: “Los Estados también tienen la obligación general de consultar a los pueblos indígenas sobre las medidas legislativas que les pueden afectar directamente, particularmente en relación con la reglamentación legal de los procedimientos de consulta. El cumplimiento del deber de consultar a los pueblos indígenas y tribales sobre la definición del marco legislativo e institucional de la consulta previa, es una de las medidas especiales requeridas para promover la participación de los pueblos indígenas en la adopción de las decisiones que les afectan directamente.”

[4] Disponível em: D10088.

[5] Tal definição é reproduzida na Lei 21.147/2004, no seu art. Art. 2º, I. Disponível em: Lei nº 21.147, de 2014.

[6] JOCA, Priscylla et al. Protocolos Autônomos de Consulta e Consentimento. Um olhar sobre o Brasil, Belize, Canadá e Colômbia. Rede de cooperação amazônica. São Paulo, 2021, p. 228.

[7] Idem, p. 101.

Fonte: https://coletivomargaridaalves.org/organizacoes-apontam-inconstitucionalidade-da-resolucao-conjunta-da-sedese-e-semad-e-exigem-revogacao/

Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.

1 – Frei Gilvander: Resolução do Governo de MG violenta direitos dos Povos Tradicionais a Consulta CPLI

2 – “É necessário Resolução do Governo de MG sobre a Consulta aos Povos Tradicionais?” (Dep. Andreia)

3 – Geraizeiros exigem anulação da Resolução do Governo de MG sobre Consulta Prévia Livre e Informada

4 – Prof. Matheus REPUDIA Resolução do Governo de MG sobre Consulta Prévia/Livre aos Povos Tradicionais

5 – Dra. Laiza: “Resolução da SEMAD e SEDESE é inconstitucional com vícios insanáveis. Deve ser anulada”

6 – Dra. Ana Cláudia: “Resolução do Governo de MG impõe RETROCESSO aos Direitos dos Povos Tradicionais.”

7 – Tatinha Alves, CEPCTs/MG: “Resolução é inconstitucional e facilita a entrada de mineradoras nos …”

8 – Dra. Alenice, do CEDEFES: “Resolução do Governo de MG: retrocesso q violenta os Povos Tradicionais.”

9 – Dra. Alessandra lista série de ilegalidades da Resolução que viola direitos dos Povos Tradicionais